Para a Mónica ler às esculturas
Carlos França, 2009
- …e depois do que vi teu, senti que não vi tudo o que queria porque falta sempre um bocado de vazio ao espaço cego que se vai enchendo de pequenos detalhes no tempo em que a infância é um rio enforcado de peixes
- era uma vez uma fila de casas alinhadas sobre um rio de águas castanhas onde ao crepúsculo as árvores se agitam como espectros pendendo dos ramos. em vez de paredes havia cicatrizes provocadas pelo medo. um cão preto ergueu-se do solo e caminhou no escuro sobre as patas traseiras…a natureza é um estado de permanência, um jogo de pequenas fortificações onde se vêem fotografias que podiam ser imagens falsas tiradas da memória do que nunca aconteceu
- numa outra ocasião as cinco casas tinham pernas de cadeiras altas que se elevavam sobre desfiladeiros
- pela segunda vez reparei que os quatro quadrados de madeira fixos à parede eram os olhos de um corpo em pose como os da dançarina que olha a sola do pé direito, de Rodin. o equilíbrio era feito de armações simples, bocados de coisas envernizadas pelos anjos que sobem e descem na vertical através de hastes que lhes tapam a alma e os suspendem das alturas
- para além da história vislumbrei uma casa e entrei pela porta semiaberta. subi pela escada de madeira castanha até ir ter ao quarto vazio, onde apenas havia um leve cheiro a perfume frio e uma lâmpada partida no chão. saí do quarto para ver se encontrava alguém com quem falar. fiquei especado de pé como uma estrela fria, à espera que tudo se desmoronasse de repente com um simples gesto, mas tudo acabou por permanecer na mesma. foi então que vi ou imaginei ver uma casa pequena com apenas cinco anos de idade a vir-se embora muito devagar com o telhado cheio de telhas partidas e meia dúzia de pássaros dependurados numa antena de televisão já um bocado a cair. era de noite quando uma porta se abriu e me veio bater em cheio na cara tendo ficado no chão inconsciente
- de manhã muito cedo quando a poeira assenta no jardim, deparo com uma estátua, em ferro, esguia e monumental que me olha de frente como se eu estivesse alguma vez interessado em ser visto por ela sobretudo no sítio onde me encontrava. fiquei durante algum tempo com os olhos postos naqueles recortes de madeira que revestiam as fachadas das casas e pensei se por detrás de cada uma não existiria, porventura, uma história de amor para contar. de repente, pareceu-me ter visto uma janela cinzenta aberta com ar sonhador com uma flor atrás da orelha. eram imagens depravadas e ingénuas saídas de um mundo que acreditava no voo inconsolável dos pássaros mortos. um mundo de mensagens enviadas sem destino para caixas do correio abandonadas que enganavam o espírito e aterrorizavam todos os que se aproximassem delas
tu
és tão metódica, tão genuinamente esculpida pela aura da tua obra que até consegues ajoelhar-te diante dos fantasmas que te acariciam o corpo como se fosses uma sentinelaadormecida de David Smith
às vezes
falta tempo à imagem, à modelagem das coisas que as mãos ajudam a fazer tendo a chama do maçarico por perto para obrigar a doce dureza da matéria a ceder ao ímpeto das formas que se perfilam como linhas esguias transformadas em posturas tensas que distribuem o peso e a elasticidade de cada forma, como se o mundo que elas habitam fosse um detalhe de urgências retidas numa singularidade. a cera e o ferro revelam-se no fogo das árvores, há neles uma vida impenetrável de segredos e caminhos que não se deixam ver mas que vivem escondidos em colmeias até que o tempo os transforme num espaço de formas abstractas resgatadas pela escrita
ouve
…entre o céu e a terra há o inferno de Goethe, o Fausto de resina vestido de negro num quarto gótico com abóbadas altas e estreitas, sentado no degrau da escada em caracol da sua biblioteca que o há-de levar ao lume escarlate da utopia infernal
sentença
circuito fechado: o caminho para a SAÍDA é o caminho da ENTRADA
amar
sentimentos, reflexos, ou ambas as coisas, a escultura é uma linguagem de convulsões graves e agudas, um amplexo de forças matéricas desconexas que desarticulam o espaço que as estrutura e devora. há um corpo fragmentário em busca duma morada que atravessa cada escultura e que deve protegê-las como se fossem abrigos eróticos prestes a serem arrastados pelas águas dos rios…, há uma voz abafada suspensa do abismo que percorre o teu outro corpo que abandonaste num sótão, como se nos alertasses para a estranha coincidência de um Deus arquitecto sem tempo nem coração para habitar
quem sabe
quem vive naquela casa de baloiço habituou-se a ver e a cheirar o ferro pintado de fresco todas as manhãs. começo a olhar para tudo de novo, como se de repente uma janela se abrisse e eu visse através dela uma textura obsessiva de casulos, nuvens, edificações, gaiolas, grutas, palafitas, fachadas de castelos, feitiços e armadilhas para aves nocturnas. como se tudo isso fossem tesouros criados para os duendes e os faunos que riem e dançam em redor de ti
Carlos França
Porto, 28 de Janeiro de 2009