Fátima Lambert
Junho 2004
“…Era toda a vez do mundo”[1]
“…lá onde se supõe que está o centro da minha emoção, onde procuro o que não encontro (…), o meu ser incógnito, convenço-me de que me desfigurei ao obrigar-me a entrar na juventude perdida, na infância perdida, e descubro-me.”[2]
“Le monde réel s’efface d’un seul coup, quand on va vivre dans la maison du souvenir.”[3]
A casa, a floresta, o labirinto, a miniatura, tanto quanto as personagens, são ingredientes sedutores que alastram imagens reais nos ouvidos e nos olhos das crianças. Os contos maravilhosos, os contos de fadas, reescritos por autores eruditos, partindo da tradição popular, usam elementos simbólicos recorrentes que atravessam gerações e, dentro de cada geração, as suas diferentes idades. Enquanto duram os contos maravilhosos, enquanto se ouvem ou lêem, deseja-se e não que o tempo passe e quando esse tempo passa, não é tempo.
As peças de escultura apresentadas fundamentam-se nestas matérias de símbolo e pensamento, devolvendo ao exterior as imagens que persistem nos adultos e que as crianças acreditam inventar.
Mundo e mundos não era uma vez, eram todas as vezes do mundo, assim como o foram e são “todas as manhãs do mundo”, segundo Pascal Quignard, prova irrefutável de que existem contos de fadas para adultos, que continuam a vê-los e a lê-los – mais do que ouvi-los – com toda avidez.
- Labirinto[4]:
Dans nos rêves, nous sommes parfois une matière labyrinthique, une matière qui vit en s’étirant, en se perdant en ses propres défilés.[5]
Nos nossos sonhos, desenham-se por vezes caminhos imbricados, que se enredam em traçados geométricos dignos de um verdadeiro Dédalo. Tais convocações retomam, nalguns casos, soluções oníricas que reganham as seduções da infância. Externalizam as imagens entranhadas que os contos, e demais histórias maravilhosas, instalaram no inconsciente pessoal, mas também na consciência recuperadora. O sonho do labirinto é articula, envolve, impressões profundas, recônditas, comprimidas. Carl G. Jung, através dos arquétipos, estabeleceu os fundamentos para uma sua mais sincera compreensão e interpretação. Os arquétipos remetem para situações arcaicas e originárias da espécie humana; resumem presenças ancestrais como referiu Robert Desoille.
O labirinto é um dos paradigmas comuns que configura a efabulação sobre o “desconhecido”, o primordial. Constitui a superação do medo e do imprevisível; expõe a atracção; inspira o sobressalto e instala o perigoso, lançando o protagonista com o seu magnetismo inevitável.
A interpretação, de sabor esotérico, envolve a noção de jornada da vida, seus êxitos e fracassos; indica o objectivo final da vida; impele à caminhada, em ordem à conquista de esperança e significado espiritual. Ao conceito de labirinto associa-se, frequentemente, a ideia de objectos ou de seres perdidos, do que é vital reencontrar no limite da demanda.
No labirinto atrai, em particular, o facto de não se saber para onde se vai – embora o fito sejaire por onde se deve ir, o que gera a aporia… Domina a convicção de ser percorrido, de ser cumprido, pois apenas e então, se desocultará a substância; é assustador e epifánico, expressando, pela sua ambivalência, a dupla condição do homem.
Com a implementação da fé cristã, o labirinto cativou proporções expiatórias. Na catedral de Chartres foi traçado um labirinto com a extensão de13 metros, ocupando toda a nave central: encerrava uma mensagem que ainda se mantém; permanecia ocultado e quando era destapado, celebrava-se, na altura da Páscoa, uma procissão/ritual para o “fazer”, para o “cumprir”. A concretização do percurso substituía, simbolicamente, la lieue, a “Caminhada para Jerusalém” – para todos aqueles que fossem demasiado velhos ou demasiado fracos para a efectuar.
No séc. XVII, a concepção de “labirinto puzzle” era bem mais profana; privilegiava o encontro de amantes secretos, acolhia amores proibidos. Existem, ainda, na tradição cultural europeia, artificiosos labirintos de espelhos, caminhos barrocos e impossíveis, viagens pela ilusão, exigidos nas cortes mais requintadas.
O labirinto, segundo Mircea Eliade, foi por vezes concebido como um nó, que carece ser desatado. O labirinto supõe, assim mesmo, a ideia de libertação, de evasão (Dédalo), como sinónimo da transposição para a sabedoria, para o Céu, para a Luz.[6]Chegar ao centro do labirinto e sair de lá, significa a vitória da vida sobre a morte, do bem sobre o mal. O labirinto é um sofrimento originário, de infância, expõe os sustos, os fantasmas de deambulações proibidas pelos adultos, mal-compreendidas, confundidas, entre os campos do real e do imaginário, isentas – à data – de gestão cognitiva da (e) auto-crítica.
- Casa, Cabana
Guardo inteira em mim
A casa que mandei
Um dia
Pelos ares
E a reconstruo em todos os detalhes
Intactos e implacáveis[7]
As casas da infância são ideais ou tenebrosas: propiciaram sonhos ou assustaram ousadia que as crianças, num ou outro momento, sempre ganham. Foram casas vividas em tamanho pequeno ou enorme, vestindo-se de seduções escondidas, de fantasmas particulares, de recantos proibidos, sótãos, caves, gavetas, portas fechadas ancorando, sabe-se lá bem que ogres, ursos ou bruxas narigudas. A casa onde se nasceu (onde se viveu desde…), as casas por onde se passou ou permaneceu e as casas fictícias são umas e outras na mesma, quando da infância se trata – a diferenciação, aliás, pode não ser totalmente nítida ou eficaz para uma adultez saudável.
A casa transporta a noção de intimidade e de intimação…Longínqua, perdida de vez, continua a ser habitada; sempre que se convoca é-se lá, em convalescença, imagem e palavra readquiridos. A casa é domínio privado que as histórias infantis sugerem ao domínio público, gerando uma conceptualização antecipada do que, em termos estéticos, plásticos e performativos, significou nos finais do séc. XX, uma das obsessões intencionalizadas de autores e produtores.
A casa da infância, a casa natal e a casa do sonho, do devaneio, definem-se consoante os princípios que predominaram no imaginário, no fantástico da criança que se foi, transpondo-os para as urgências da maturidade. Além, das explicitações de teor analítico evidentes, as raízes antropológicas da casa obrigam-nos a recuar a territórios ancestrais.
Mircea Eliade[8], referindo-se à cabana das populações primitivas da Sibéria e do Norte da Europa, atribuiu ao pilar central a função de assimilar o eixo cósmico – “simbolismo do centro”. Nas “yourtes”, a função simbólica desse pilar central, era assegurada por uma abertura superior, por onde escoava o fumo, nos casos da celebração de sacrifícios; ficando garantida a absorção simbólica entre a casa e o centro do mundo.
Sabe-se que as cabanas pré-históricas e, mesmo as actuais, evocam – num plano teleológico – material e misticamente a mulher, considerada como única geradora da continuidade humana, intensificada a associação entre a habitação e o santuário. Na cultura Dogon, no Mali, as cabanas significam quer o corpo dos homens, quer o das mulheres, através da sua morfologia, remetendo, por analogia, para a união entre os sexos.
As casas palustres seguram-se em cima de estacas que oscilam com as marés, permanecendo contudo, presas ao fundo dos rios, à terra invadida pelas águas, explicitam uma ideia que se pode considerar análoga em termos simbólicos. Transfiguração dos elementos do mundo, essa alquimia ganha corpo em construções inventadas.
Nas diferentes culturas e tempos, a casa é portadora de significações ricas e derradeiras, incorporando em si a existência de quem as habita, decidindo sobre destinos, em nome das forças cosmogónicas, dos xamanes, dos heróis, dos deuses ou de Cristo, consoante os sistemas mitológicos e religiosos vigentes. Consequente é que, uma tal intensificação nocional fosse determinante para a iniciação e inserção, das crianças nos circuitos e nas tipologias sistematizadoras do quotidiano, através da sua iconografia e simbolismo [da casa], fundamento de inúmeras efabulações tradicionais.
La maison ne suit pas
La maison nous regarde
Entre deux arbres
Sa chevelure rouge
Et son front blanc
Le silence s’attarde[9]
A casa implica habitar; habitar, por sua vez, obriga a identificar aquele ou aqueles que a habitam: sejam pessoas, ursos, bruxas, meninas órfãs e perdidas, donzelas ou porquinhos…Todos habitam e não apenas uma vez, mas todas as vezes do mundo. Há casas que assustam como se fossem fotografias, de tão reais que são na sua imagética; casas de contos de fadas que são demasiado representativas de emoções profundas: obsessões, medos, angústias, desejos e subterfúgios. As casas possuem portas por onde se entra e por onde nem sempre se sai, antes de cumprir os convenientes rituais de provação ou iniciação – camuflados e sublimados. Há o tempo destinado para dentro de casa, progredindo para o clímax, soçobrando o pathos, até à remissão, até à redenção final – normalmente feliz, pois se trata de contos de fadas.
Idêntica obsessão pela casa como habitação, como moradia, existe na literatura “para adultos”, estando-lhe associada: condições, circunstâncias, decisões, inevitabilidades que não se compadecem com zonas de negociação intermédia ou inconsequente. As casas representam, em obras literárias exemplares, o protagonista que assimila os protagonistas. As casas tornam-se lugar obsessivo, compulsivamente chamando ao retorno, quase em efeito circular, resgatando a noção de tempo mítico (salvaguarde-se, embora, a distinção entre os reinos do mito e maravilhoso) sobre a qual Octavio Paz, tão sabiamente, se debruçou em Hijos del Limo.
As casas e seus segredos – sejam estes espíritos, maldições ou cabalísticas – Isabel Allende, Stephen King, ou Richard Zimmler[10], obrigam à derrocada, à morte, à revelação, que propiciam a reconstrução, a vida.
As casas dos contos de fadas, em geral, não são moradias, pelo menos no sentido sociológico que se lhes atribui na contemporaneidade. São arquitecturas avassaladoras, quer para o bem, quer para o mal, não se deixam governar por rotinas, explodem-lhes emoções, rebelam-se em nome de seres opressivos (ou opressores), de animais prepotentes. As casas afirmam identidades a que estão alheios sujeitos obedientes ou criaturas submissas. Às vezes, estão recobertas por imagens de árvores, abafam os sujeitos que habitam, que pernoitam incautos. E de tal modo árvores/floresta submergem as casas, que estas se metamorfoseiam em árvores/floresta, reinando fora e dentro delas as pulsões do imaginário fecundo.
- Floresta, árvore
Por trás das árvores há um outro mundo,
que o meu pai trocou por dois pássaros,
que a minha mãe trouxe para casa num cesto,
que o meu irmão perdeu no sono, quando tinha sete anos e estava cansado…[11]
As casas, as cabanas dos contos de fadas situam-se em lugares genuinamente simbólicos: florestas, bosques enclausurados por obstáculos insuperáveis, muito mais do que em locais áridos e expandidos em grandes horizontes. A localização das casas associa-se à quase intransponibilidade, clamando superação, privações (dominando a inoperância) para lhes aceder. Então, mesmo não sendo “verdadeiros labirintos”, os espaços em que se inscrevem, tomam as qualidades de “labirinto”. Exigem as ditas provas iniciáticas. Os contos assinalam a necessidade de empreender a auto-gnose, o auto-conhecimento, não apenas o “reconhecimento”; destinam a assunção, a conquista da identidade própria que garante o “final feliz”.
La forêt voilá la forêt
Malgré la nuit je la vois
Je la touche je la connais
Je fais la chasse à la forêt
Elle s’éclaire d’elle-même
Par ses frissons et par ses voix[12]
Robert Musil dizia que a floresta era a entidade quase inexprimível, enquanto que as árvores se podiam representar em metros cúbicos, assim definindo os homens, consoante um ou outro sentido das realidades.[13] Nos contos de fadas articulam-se ambos: o sentido da floresta e o sentido das árvores (respectivamente a realidade quimérica e a realidade real…), pelo menos assim me parece…E uma e outras trocam de lugar nas mentes e nas narrações, subvertendo as nossas “qualidades” ou a falta delas!
Florestas ou bosques vivem da cumplicidade de árvores de espécies propiciadoras à revêrie, à fantasmatização. As árvoresadvertem características morfológicas e representacionais que encorajam o desencadeamento do enredo, promovendo as emoções, os afectos, a quase radicalidade das experiências.
A árvore é a “árvore da vida”, símbolo da imortalidade. No seu conjunto, fadadas ou malfadadas, são árvores, senão de morte, de transfiguração, em prol das mudanças que viabilizam a vida. As árvores são elementos sagrados, susceptíveis de serem tocadas por seres que demonstraram qualidades excepcionais; associam-se-lhes animais, devidamente adequados que auxiliam a enfatização do seu protagonismo nos enredos.
As árvores testemunham as forças indestrutíveis da natureza, a irrevogabilidade da passagem dos ciclos; são símbolos da precariedade e da perenidade, consoante as espécies e exigências atributivas da história. Daí, certos povos terem acreditado que a existência do mundo dependia de uma potentíssima árvore cósmica – casando natureza e Cosmos.
A árvore está no eixo cósmico, unindo o mundo subterrâneo ao céu, através da terra. A terra nutre, ainda que seja território de morte sacralizada. A terra é progresso, é sulco por onde a água corre, acordando a vida. Assim, é uma imagem de síntese privilegiada, é um arquétipo. É estabilidade, maugrado todas as intempéries e tormentos; é a duração, apesar da passagem das estações, dos ciclos.
As árvores enterram-se na terra, essa terra da imageriedo “repouso”, parafraseando Bachelard. Mas, em Hänsel e Gretel, no Capuchinho Vermelho, os Três porquinhosou na Branca de Neve, as árvores, a terra – metamoforizada em caminhos, em veredas ou direcções – é tudo menos local de repouso; é a terra que engole as pegadas, os vestígios; aquela que destroça as memórias e o vislumbre do fim do caminho, desviando os protagonistas para casas/cabanas que são abrigos ilusórios, transitórios e/ou suspeitos.
A árvore do Paraíso, se induz à queda, através do fruto proibido, redime e cresce de forma quase mística – à sua sombra operam-se milagres. As sombras das árvores, no recolhimento da floresta que encerra as almas e as crianças em fuga, potencializam ânimos e sentimentos, revelam préstimos e ousadias desconhecidas que as personagens assumem e afirmam, para sua sobrevivência. As sombras das árvores engolem as sombras das personagens, unindo-se num acto quase erótico, essa fusão de tragédia e vida que confunde os leitores.
A passagem das personagens pelos bosques, pelas florestas, repete-se em diferentes estações do ano, assim estabelecendo as respectivas acepções simbólicas que lhes estão consignadas, correspondendo às exigências do desenvolvimento dos enredos em causa. As árvores reivindicam soluções meteorológicas extremas que provocam, ainda, a maior necessidade de refúgio. As árvores podem estar mutiladas, ser atingidas, mas revigoram-se e transcendem-se, à semelhança do destino de pequenos ou grandes protagonistas dos contos maravilhosos.
La forêt qui l’arrête est un abri où il fuit le soleil et il regarde, sans la voir, montrer la route vers les arbres.[14]
As árvores, finalmente, fisicalizam a solidariedade entre a planta e o homem, mesmo quando, à primeira vista, o agridem ou acossam. As árvores integram o circuito inevitável, contínuo, entre a espécie humana e o espaço natural. São intermediárias e transfiguradoras, substância da materialidade da imaginação; são produtos míticos por excelência, emblemas divinos, símbolos da criação. As raízes das árvores, fora das sombras e do ocultamento do eu, são imagens dinâmicas, são a descoberta.
A floresta, na perspectiva psicanalítica, significa o inconsciente. No campo fechado de árvores, definindo um território de bruxas, anões ou lobos maus e avozinhas honestas, encontram-se as casas que, por sua vez, vão encerrar as personagens, configurando um labirinto de labirintos circunscritos, até que se desencadeie a redenção, a purificatio, até que a felicidade possa emergir do passado/presente trágico, do sofrimento e da queda.
- Miniatura
A vida me fez de ver em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo.[15]
O arquitecto, o geómetra, o pintor, vêem tal e qual, a transposição de figuras que tenham sido desenhadas em escalas diferentes. Olha-se a planta de uma casa em escala reduzida (fenomenologia da similitude), reconhecendo a objectividade dos aspectos apresentados, atribuindo valor funcional e objectivo e, portanto, não instalando os problemas de recepção perceptiva, de leitura transposta, que são suscitados, que emergem, na Filosofia da Imaginação, como alertou Bachelard.
O recurso à miniatura responde a propósitos vários, restringindo-se aqui as considerações semânticas e pragmáticas, aos campos da poética, da estética e das artes. Na literatura ocidental, as referências à redução de escala que configura seres, natureza e objectos, possuem uma intencionalidade que é gerida consoante as exigências dos conceitos em exercício teórico. Nas histórias, nos contos de fadas, as miniaturas revelam um protagonismo eficiente que direcciona a sucessão os caminhos inclusos no enredo, que determina (estabelece mesmo) o desenrolar das decisões das personagens. As personagens são, elas próprias por vezes, miniaturas de si, por imposição de desígnios maléficos ou para desconstrução de estereótipos societários e morais latentes.
As miniaturas, no que respeita às personagens em escala reduzida, são portadores de razões quer filogenéticas, quer ontogenéticas; correspondem a exigências endógenas ou exógenas, consoante as orientações que a imaginação criadora lhes destinou. O Pequeno Polegarzinhoé uma miniatura necessária, vital, para a consolidação de uma axiologia antropológica, valorizadora de qualidades essenciais que se concentram na pequenez de um ser que transcende a dimensão quantitativa do homem na maturidade. Realiza e desmistifica a grandeza do gigante, como sinónimo e reservatório de qualidades superiores.
Toutes le petites choses demandent la lenteur. Il y a bien fallu se donner un grand loisir dans la chambre tranquille pour miniaturer le monde.[16]
As miniaturas podem não ser reduções, mas adquirem a condição de miniatura pois convivem com seres e arquitecturas em escala superior, subsistindo a sua condição de medida a uma plataforma inferior aquela que normalmente transportam – por confronto ao gigantismo dos protagonistas predominantes e que dominam, em termos de relacionalidade societária. [Evoque-se o caso do filme “Queres ser John Malkovicth”, quanto à eficiência dramática da personagem que conduz ao desamarrar, ao fulcral de todo o enredo, nesse 4 ½ andar do prédio, que representa a via de acesso à imaginação a viver/vivida (objectiva e quotidiana, aceite socialmente, diga-se) e que, posteriormente, galgará razões do imaginário ao permitir a inserção de vários sujeitos/pessoas no corpo de um. É uma fábula, transporta a metáfora fortíssima (nos domínios da fenomenologia e antropologia do corpo), em versão para adultos, adequada à assunção de processos de luta e/ou auto-redenção.]
Quando a casa é uma miniatura, aos seres de proporções “normais”, não sempre lhes é vedado o acesso. Penetrando nas habitações, o herói ou heroína, não apenas magicamente cabem, como se surpreendem pelo redimensionamento do interior: salas e quartos enormes, vastos e inesperados. Subjaz, a estes casos, a bi-relacionalidade dos arquétipos de continente e de conteúdo, que autores como Gilbert Durand trabalharam, explorando os territórios do imaginário (das estruturas antropológicas do imaginário, aliás).
O que acontece às personagens quando entram nesses mundos interiores vastos? O inconsciente pessoal conduz à descoberta interior, desoculta a beleza interior. A inversão de perspectiva domina, a inversão é consubstancializada, a genuína dimensão do indivíduo, do sujeito em causa é reconduzida internamente à sua veracidade, anterior a qualquer “feitiço” ou condão. Quer a disponibilidade para o sonho e efabulação por parte do leitor, quer o talento e força fixada pelo narrador, viabilizam, predispõem a que assim suceda, facultando o acesso a sucessivas plataformas de auto-reconhecimento e remissão ontológica.
As casas de papel, os modelos em cartão que se recortam, colam e montam, essas maquettesque as crianças, muitas vezes constroem, para superior delírio dos pais, são a dimensão visível, possível e objectiva das miniaturas da imaginação que se materializam no “real”, presentificando episódios das histórias contadas.
As miniaturas da imaginação conduzem-nos muito simplesmente à infância própria, devolvem a veracidade insuspeita dos brinquedos, ainda que o medo ou a angústia lhes esteja adstrita. A imaginação subsumada na miniatura é mais ainda: é o caminho, o exercício da imaginação “natural”; surge em qualquer idade, nos reinos de qualquer sonhador, de qualquer rêveur. Trata-se de procurar a matriz efectiva, genuína, de quem faz as miniaturas, trata-se de apreender a evasão dos demais, a sua redenção, a transacionalidade, a introjecção, a incorporação pulsional da aparência do real quando dominada pelo imaginário. Parcialmente, as miniaturas propõem-se atingir, de um modo pregnante, os propósitos comunicativos, dar aos outros as imagens próprias em quase esplendor.
“Closing time”[17]:
J’ai appris à parler du bonheur, à être heureux je n’ai point appris.[18]
1+2+3+4= o labirinto, a casa, a floresta, a miniaturasão conceitos que no mundo dos contos maravilhosos desempenham papéis determinantes; são catalizadores, são eixos de mutações e destinos redimidos. Os protagonistas dessas narrativas transportam características distintivas entre si, embora possuam em comum ensejos de superação, a condição que da primeira renúncia do eu, ascende à transposição para a noção identitária suprema. Crianças predestinadas a sacrifícios, à efectividade de auto-superação, apoiadas em fadas-madrinhas ou no bom senso, na artimanha ou na reflexão coadjuvada por seres misteriosos e impolutos, ganham territórios por mérito próprio. Transcendem a repressão, superam a destruição das vidas quotidianas, desfeitas por fatalismos, subjugam os destroços da anulação das identidades – devido aos malefícios instituídos pelas “forças do mal” – que é muito mais o inconsciente individual (ou colectivo, consoante os episódios) do que o protagonista nominado, indiciado para a acção irreversível.
O facto da Escultora construir as suas personagens é significativo. Garante-lhes presenças recorrentes, que lhes permite atravessarem as diferentes peças; assegura-lhes a transversalidade interpretativa nos diferentes contos – constrói-lhes corpos em acrílico transparente.
As peças-sujeitos são colocadas. Fixam-se em momentos não-localizáveis ou tampouco estanques, das sequências-obras. Abrem para os espectadores os tempos dos acontecimentos; fazem-nos entrar na história nos seus tempos, explorando a duração da prova ou logo atingindo o desenlace. A transparência dos seres fabricados, à sua imagem própria e semelhança, evoca o elemento água, a fertilidade e a condição matricial. Recolhem em si, a crença na dimensão fecunda do humano miniaturizado, que já não é Hänsel, Gretel, Capuchinho Vermelho, Polegarzinho, Ursinhoou um outro qualquer, mas o sujeito humano, na estranheza de sua infância – bem ou mal sucedida, na adultez paradoxal, compensatória ou trágica. São sempre, a meu ver, episódios de criação, quer surjam do nada, quer sejam recuperações transfiguradas. Concluem-se, decidem-se, viajam mas recomeçam, outra e outra vez, nesse tempo para-além do tempo (repetitivo, cíclico e redentor, mas não mítico) que ironiza com as peculiares seduções dos indivíduos deixados de ser crianças.
Sobre o cenário das fotografias que forram as caixas/casas, servem-se imagens de real, trabalhado numa escala que não transtorna a diferença entre os ramos das árvores e os bonecos de acrílico que habitam – os não baudelairianos – “paraísos artificiais”…
Os contos de fadas, os contos maravilhosos são verdadeiramente “alegorias dos mundos internos”[19], celebram a espontaneidade das carências, a precariedade das convicções, a insegurança da rotina, o não questionamento dos sentimentos mais íntimos de cada um e de todos, naquilo que existe de substrato comum, arquetípico. A aceitação que acolhem de tantas gerações e culturas reconhece-lhes a universalidade, a transtemporalidade dos temas, das iniciativas, dos protagonistas, dos tabus ou das apologias…Tudo se mistura numa poção mágica que se vê e apenas se ingere dissimuladamente…espécie de veneno benigno e profilático. As aparências iludem com rigor, com a justeza de serem meras ilusões, de não se apropriarem da veracidade histórica, factual. Não carregam verdade, desvendam-na.
Fátima Lambert
Porto, Maio de 2004
[1]Para adulto que invente reinos.
[2]Thomas Bernhardt, Trevas, Lisboa, Hiena, 1993, p.45
[3]Gaston Bachelard, La Terre et les rêveries du repos, Paris, Ed.José Corti, 1979, p.95
[4]Labirinto, etimologicamente, deriva de Labris. O machado duplo aparece gravado nas paredes de pedra do palácio cretense de Knossos. A complexidade e dimensão do palácio deram origem ao labirinto. É o labirinto da lenda que narra a façanha de Teseu ao enfrentar o Minotauro que habitava o palácio do rei Minos. Teseu recorreu ao “fio dourado de Ariadne” para superar o trágico destino, até aí inevitável, para os jovens que anualmente lhe eram sacrificados. Numa interpretação psicanalítica, Teseu significava o lado bom do homem a procurar matar a sua parte má – Minotauro.
[5]Gaston Bachelard, Op.cit., p.211
[6]Cf. Lima de Freitas, O Labirinto, Lisboa, Arcádia, 1975
[7]Adriana Calcanhoto, “Pelos Ares”, Cantada, BMG, Brasil, 2002
[8]Cf. Images et Symboles, Paris, Gallimard, 1952
[9]Pierre Reverdy, « Chemin de Pas », Plupart du Temps,II, Paris, Gallimard, 1969, p. 95
[10]Refiro-me, entre uma infinidade de casos e a título de exemplo, à Casa dos Espíritos,Shinning (levado ao cinema por Stanley Kubrick) e a O Último Cabalista de Lisboa, respectivamente de um e outro Autores, acima mencionados.
[11]Thomas Bernhard, “Por trás das árvores há um outro mundo”, Na Terra e no Inferno, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pp.61 e ss.
[12]Paul Éluard, Poésie Interrompue, Paris, Gallimard, 1953, pp.67-68
[13]Cf. O Homem sem qualidades, vol. I, Lisboa, Livros do Brasil, 1952, p.17
[14]Pierre Reverdy, « Son Seul Passage », Plupart du Temps, I, Paris, Gallimard, 1969, p. 118
[15]Clarice Lispector, “Pertencer”, A Descoberta do Mundo, Lisboa, Indícios de Oiro Ed., 2004, p.26
[16]Gaston Bachelard, La Poétique de l’Espace, Paris, P.U.F., 1983, p.149
[17]Tomando o título de uma canção/poema de Leonard Cohen, Sony, 1993
[18]Amin Maalouf, L’Amour de loin, Paris, Grasset, 2001, p.13
[19]Confrontem-se de J.C. Cooper, Cuentos de Hadas – Alegorias de los Mundos Internos, Málaga, Ed. Sírio, 1986 e de Marie-Louise Von Franz, Les Mythes de Création, Paris, La Fontaine de Pierre, 1982 ou L’Ombre et le Mal, Paris, La Fontaine de Pierre, 1980, entre outras obras subordinadas ao tema.